[p. 11] Os tabeliães em Portugal. Perfil profissional e sócio-económico (sécs. XIV-XV)
[p. 13] Situarmos o tabelionado português nos séculos XIV e XV é pensarmos uma profissão já com século e meio de história1.
Depois da primeira tentativa precoce de D. Afonso II de criar tabeliães2, eles são uma realidade segura na segunda metade do século XIII3. Surgem por determinação régia, impondo-se, gradualmente, a nível local no governo de D. Afonso III. E para que definitivamente se enraizassem, as sistematizações, listagens e codificações começam a surgir — livros de notas e registos, róis de tabeliães e regimentos.
Há referência a um livro de notas do tabelião Domingos Pais de Lisboa, em 12644. A sua existência é prescrita com obrigatoriedade, logo no regimento de 1305.
[p. 14] Possuimos um rol de tabeliães, com data crítica entre 1287-1290, elaborado por mandato régio, com a finalidade de taxar a lucrativa actividade da escrita. Rol de há muito aproveitado nos seus preciosos informes de número de tabeliães por localidade e do respectivo quantitativo a pagar à coroa5, que nos ilumina sobre o alcance do exercício do labor do tabelionado.
Por sua vez os regimentos dos tabeliães sucedem-se em 1305 (15 de Janeiro) e 1340 (15 de Janeiro)6, para além da posterior codificação nas Ordenações Afonsinas.
A leitura destes regimentos deixa-nos aperceber claramente um passado já enraizado destes profissionais da escrita. Tão enraizado o seu labor, como os vícios decorrentes do mesmo. Daí que muitas das exigências estipuladas derivem de maus usos então instalados, que se queriam erradicar.
Em linhas gerais os 29 artigos do regimento de 1305 têm em vista três aspectos genéricos :
- impedir aos tabeliães o acumular de profissões ;
- exigir que, em todos os detalhes, cumpram escrupulosamente a sua actividade de escrita ;
- determinar que sirvam a justiça ou se sujeitem a ela quando prevariquem.
No que ao primeiro ponto concerne os tabeliães não devem ser clérigos (art. 28), não devem advogar perante os juízes (art. 2), muito menos ser juízes (art. 12). Igualmente lhes fica interdito serem rendeiros do mordomado ou de outras rendas que usualmente detinham (art. 13). Antes, para o correcto exercício do seu mester, nas localidades onde havia 2 tabeliães ou mais, cumpre-lhes ter casa ou paço, onde a clientela saberia poder encontrá-los (art. 21).
A sua profissão quer-se exercida correctamente, servindo com prontidão e verdade os clientes.
As notas dos instrumentos a escrever devem fixar-se em livros de notas em papel e não em folhas avulsas que se perdem (art. 1)7. Expedidos os documentos, o seu registo far-se-á em livro de couro, destinado a perdurar (art. 3)8.
As partes envolvidas no acto devem ouvir previamente a leitura das notas, para que não haja dolos (art. 4), ou, se não se conhecerem as partes, pelo menos [p. 15] ouvi-las-ão ler as testemunhas (art. 8). Também os tabeliães devem ser escolhidos com o acordo das partes (arts. 22, 27).
Na execução das cartas tudo se deseja claro — não pode haver palavras entrelinhadas ou rasuradas, nem abreviaturas nos nomes, dívidas ou datas, que tornam os documentos incompreensíveis (art. 14) ; os documentos devem estar devidamente datados pelo dia, Era e lugar em que foram feitos (art. 16) ; os documentos de dívidas têm de ser dados até 3 dias e os demais até 8, para terminar com o abuso de só escreverem as cartas ao fim de anos (art. 5) ; não podem levar mais do que o taxado para as diversas escrituras (art. 10) ; não podem exigir dinheiro por procurar os documentos que os clientes já pagaram, nem provocar demandas por isto ou dar maus tratamentos aos mais pobres (arts. 6, 7 e 23) ; nos prazos de dívidas entre cristãos e judeus deve estar claramente escrito o montante do empréstimo e o juro (art. 9)9 ; devem respeitar regras para a execução de grandes escrituras, cuja feitura exige até, por vezes, a saída do reino (art. 17) ; se uma das partes pedir um dos actos de uma carta partida tem de lhe ser dado (art. 18).
No referente à justiça não a devem obstruir — por isso têm de comparecer como testemunhas quando as partes os convocam ou os juízes exigem o seu testemunho (arts. 11 e 19).
Mais, são obrigados a cumprir o que os juízes lhes mandam corrigir e não ameaçar a justiça, como até ao tempo faziam (art. 20). Faz também parte do seu munus coadjuvar a justiça régia, escrevendo as malfeitorias que se fazem, creditando-as por meio de testemunhas (arts. 24, 25), da mesma forma que, havendo acordo entre as partes, também este deve ficar anotado (art. 26)10.
D. Dinis considera que desde então os tabeliães prevaricadores seriam penalizados como falsários e acrescenta “eu vos matarey porem”11.
Mas a sua lei parecia não ter efeito por falta de esclarecimentos de quem devia julgar os abusos dos tabeliães. Então Afonso IV expede de Leiria, a 1 de Agosto de 1326, uma carta que determina que tal acusação pode ser feita perante o vedor da sua chancelaria ou os juízes locais, reservando para si o direito de apelação12.
Os abusos pareciam manter-se em 1340, quando Afonso IV manda promulgar um novo regimento, com 22 artigos. Inteiramente decalcado no anterior, faltam-lhe apenas os itens que dizem respeito à interdição dos tabeliães serem [p. 16] clérigos e de não poderem ser eleitos para juízes. O primeiro aspecto talvez já não fosse de particularizar, dado que se sabia estarem genericamente interditos os ofícios seculares a clérigos de ordens sacras ou menores13. Igualmente não se encontra neste regimento o artigo referente aos tabeliães exigirem dinheiro por procurarem as escrituras ou negarem-se mesmo a fazê-lo. Todavia, surge um curioso acrescento quanto ao tempo da feitura dos actos, que bem demonstra a vitalidade crescente da profissão. Assim, admite-se agora, poder haver um acordo entre o tabelião e as partes para se distender o prazo máximo de 8 dias para a entrega de uma escritura (art. 3)14.
Nada de muito substancialmente diferente é regulamentado no título XXXXVII do livro 1 das Ordenações Afonsinas em 20 artigos15. Sendo este, todavia, já um verdadeiro código, eliminam-se as exposições de situações dolosas para se evidenciar apenas o que deve ser cumprido. Ausentes estão certos artigos do primitivo regimento16, mormente um bom número deles que dizem respeito ao relacionamento com a justiça17. Mas também cláusulas se encontram nestas Ordenações muito mais clarificadas e desenvolvidas18, sendo outras completamente novas e tradutoras de um progresso desta profissão, já bem amadurecida no século XV, quando em 1447 sai aquela compilação.
No artigo 10° discriminam-se, com precisão, as competências dos tabeliães das audiências e do paço, cujas funções devem ser independentes. No 16° exige-se que, quando as pessoas que necessitem de uma escritura não puderem ir ao paço dos tabeliães, estes devam ir a suas casas. No 17°, porque o relacionamento entre judeus e cristãos muito se havia complexificado, estipula-se com minúcia o modo de agir na feitura de documentos entre os homens dos dois credos religiosos. Finalmente, no artigo 19, interdita-se que, depois de dados os documentos às partes — e citam-se contratos de obrigações, aforamentos, arrendamentos, compras, vendas, apenhamentos — não sejam passadas quaisquer outras cópias do mesmo sem autorização régia.
Codificadas estavam as funções do tabelionado. Ao mesmo tempo viram-se igualmente determinados os emolumentos a cobrar pelas escrituras. Daí que o primeiro documento regulamentador, que se conhece, anteceda o regimento de 1305 em três dias19. No final dessa lei anunciam-se, pois, algumas cláusulas profissionais que se constituirão em artigos do aludido regimento.
No que às taxações concerne, verifica-se que alguns documentos tinham um preço fixo, enquanto outros eram pagos à linha.
[p. 17] Assim os mais caros documentos a preço fixo que se registam são as cartas de alforria e os prazos, que orçam a 5 soldos. Por 4 soldos o tabelião escreverá uma carta de doação, venda ou compra, escambo, emprazamento, procuração ou apelação de clérigo ou qualquer outro instrumento “d’algũa fermidoem”. Por 2 soldos se obtém uma carta de “mandadeira” e um prazo que se não registe.
Nos demais documentos que os tabeliães escreverem cobrar-se-ão 2 dinheiros por cada 3 regras. Mas, para que não haja fraudes — e elas não faltariam — nas linhas as letras não deviam estar tão afastadas umas das outras que até parecesse haver um engano e o pergaminho haveria que ter de largura um côvado.
As escrituras de inquirição pagavam-se de forma diferente — por artigo, cada um a 4 dinheiros ; e por testemunha, cada uma a 2 dinheiros.
Regulamentam-se, ainda, as despesas de caminho. Nas deslocações dentro da vila, pela ida e regresso, o tabelião podia cobrar-se de 2 soldos. E nos lugares onde houvesse 2 tabeliães ou mais este percurso devia ser feito por 2 tabeliães a par, cada um deles cobrando-se daquele dinheiro20. Se porventura os tabeliães tivessem de ir fora do âmbito do seu tabelionado, receberiam 4 soldos por cada légua percorrida, sendo-lhes fornecida uma besta para o regresso. Mas também aqui não se permitiam enganos. Logo, se o tabelião morasse fora da área do seu tabelionado não podia receber qualquer dinheiro pela deslocação até às terras que lhe competiam21.
Quase dois séculos decorridos e a codificação dos salários do tabelionado surge altamente desenvolvida e precisa nas Ordenações Afonsinas em vários títulos22 — tabelas pela execução dos documentos (diferentes consoante em pergaminho ou em papel), pelas suas buscas e pelas deslocações. Claramente distintos se apresentam os tabeliães das audiências ou do judicial e dos paços das notas23 e toda a tramitação da escrita judicial fica regulamentada.
Como regra, o tabelião das audiências, em inquirições, apelações, traslados e termos de processo, cobra de 9 regras 1 real branco, enquanto o escrivão recebe o mesmo mas por 10 regras, sendo o tabelião compensado, dado o imposto a pagar ao rei (título XXXV). Mas para além desta regulamentação genérica tudo fica pormenorizadamente descrito em 14 artigos quanto ao custo da abundante e [p. 18] variada tramitação processual e escrita que a casuística exige. No título XXXVI, em 8 artigos, especificam-se os emolumentos das sentenças das cartas dos processos. As sentenças que envolvam uma pele de carneiro “chea de boa escriptura, sem malica escripta” custam 50 reais brancos ; escritas em meia pele, orçam a 25 ; e a 1/4 de pele, 15. Os documentos processuais em papel são mais baratos — 16 ou 12 reais brancos, conforme o tamanho e o tipo de carta pretendido.
Segue-se no título seguinte, em 3 artigos, o preçário das cartas que dizem respeito aos tabeliães dos paços. As escrituras que encham uma pele de pergaminho bem escrita, sem malícia, serão feitas por 40 reais e a sua nota no livro por 60 : as de meia pele valem 20 reais e 30 de nota ; as de 1/4 de pele 12 reais e 16 de nota. Já uma escritura lavrada numa folha de papel se paga por 12 reais e 16 da sua nota e em meia folha 6 reais e 8 da nota. Nos inventários ou outros documentos semelhantes, os tabeliães dos paços pagavam-se como os dos processos, a saber, a 1 real branco por 9 regras, além dos 4 reais de percurso, caso fossem elaborados na vila ou arrabalde.
Os títulos XXXVIII (em 2 artigos) e XXXIX (em 8 artigos) regulamentam as vistas dos feitos e as suas buscas24.
A complexidade da justiça e da burocracia, que se vai adensando nas centúrias de Trezentos e Quatrocentos, conduz a sobreposições, ou mesmo fraudes, por parte dos diversos agentes da escrita. Necessidade teve D. João I de delimitar as esferas de acção dos tabeliães das audiências e do paço, legislação que Afonso V reitera e nas Ordenações Afonsinas25 se insere. A grande conflituosidade existente ao tempo, mormente face à alta taxa de mortalidade que levantava problemas de heranças e tutoria de menores, é aproveitada pelos tabeliães das audiências. Chamam então a si a feitura de testamentos e codicilos (art. 2), inventários, arrematações e vendas de bens dos falecidos (arts. 3 e 6). O recurso dos homens à justiça, para terem a confirmação da legalidade de certos actos, levam-nos a escrever as cartas de contratos entre cristãos e judeus (art. 5) e as posses de bens (art. 4). Do mesmo modo se arrogam ao direito da escrita dos actos que os presos necessitam ou dos contratos que os juízes confirmam.
Tudo fica agora regulamentado, denunciando-se os abusos dos tabeliães das audiências e ampliando-se o âmbito da competência dos tabeliães do paço. Alguns documentos podem ser, indiferentemente, escritos por ambos os tabeliães — frontas e protestações, citações e outros (arts. 10, 11, 12) — enquanto alguns mais específicos do judicial só cabem aos tabeliães das audiências (arts. 13, 14, 15). Esclarecida fica também a competência dos escrivães dos órfãos e dos tabeliães do paço (art. 9), no tocante à documentação pedida por tutores ou curadores de menores.
Finalmente a lei regulamenta a vestimenta e o estado civil dos tabeliães.
Por carta saída de Sintra, a 23 de Julho de 1433, D. Duarte determina que os tabeliães tragam “roupas farpadas, e devisadas de colores desvairadas com [p. 19] deferenças partidas bem devisadas, sem nunca trazendo em nenhum tempo coroa aberta grande, nem pequena”26. O tabelião fica assim perfeitamente individualizado como um leigo e, adentro destes, com sinais profissionais distintivos27. Nas Ordenações Afonsinas (liv. I, tit. II, art. 12) exige-se, além disso, que o tabelião seja casado28. Os viúvos tinham o prazo de um ano para voltarem a casar, podendo durante esse ano vestir qualquer tipo de roupa, sem perder o ofício29.
Leis, posturas, códigos. O normativo, não o vivido. Da lei à prática por vezes um longo caminho. Como da realidade ao nosso conhecimento.
Comecemos por aqui.
Existindo em Portugal tabeliães desde o século XIII, como se formariam ? Não o sabemos. Não se encontrou até agora qualquer referência a uma escola de tabeliães. Os primeiros teriam aprendido a ler e a escrever em qualquer escola catedralícia ou monacal, exercitando-se por certo ao lado dos notários ou monges dessas instituições e, uns quantos, na chanceleria régia. E depois o saber profissional aprendia-se com a prática, nas oficinas tabeliónicas, a ponto de, como já foi verificado, alguns discípulos poderem utilizar os sinais dos mestres30.
A fundação da Universidade em Lisboa, entre 1288-1290, terá contribuido para uma melhor qualificação intelectual destes agentes da escrita. E talvez só desde então se lhes exigisse o exame sobre o seu saber, a partir do qual ficavam aptos a desempenhar o seu ofício. De uma carta dionisina de 1321 parece intuir-se que teria sido esse monarca a determinar essa “eisaminaçam” a todos os tabeliães31. D. Afonso IV exigiria um juramento dos tabeliães na chancelaria da corte, o que os povos dizem, nas Cortes de 1331 (art. 44), que aqueles não [p. 20] cumpriam32. Depois claramente fica estatuido nas Ordenações Afonsinas (liv. I, tit. II, art. 10) que os tabeliães e escrivães “hão de seer examinados pelo Chanceller, fazendo-os escrepver perante si, e se vir que escrepvem bem, e som perteencentes pera os Officios, devem-lhes dar suas Cartas, e d’outra guisa nom”.
Assim habilitados e reconhecidos, eram os tabeliães nomeados pelos reis para as diversas cidades, vilas e lugares do continente e depois das ilhas e demais possessões ultramarinas da África, Índia e América.
Mas, como já vimos, a burocracia exigiu a distinção entre tabeliães do judicial e do paço e, de entre os primeiros, até a especialização em tabeliães do crime e do cível. Aliás a diversificação judicial levou ao aparecimento de juízes dos órfãos, dos judeus, dos mouros, dos ovençais, dos besteiros, dos resíduos, do mar, da moeda, entre outros, e todos eles tinham a assessorá-los, na escrita, escrivães, ditos jurados33. E como se estatui nas Ordenações Afonsinas (liv. I, tit. II, art. 16) estes podiam até dar fé pública aos actos do seu ofício, desde que para tal tivessem sinal reconhecido por licença régia.
A competência régia da nomeação dos tabeliães foi sempre muito disputada pelos concelhos que se queriam arrogar ao direito de escolher os seus próprios tabeliães34, como veremos. E já numa lei sem data, mas do século XIV, se admite que sejam os homens bons e vereadores a escolherem os tabeliães do judicial35.
Os monarcas tinham sempre o direito de elevar um destes profissionais a tabelião geral do reino, ampliando assim maximamente o âmbito territorial da sua esfera de acção e conferindo-lhe, em alguns casos, amplos privilégios36. Os vários tabeliães das localidades, quando a concorrência aumentou, estavam sujeitos a uma distribuição de serviços feita justamente pelo distribuidor37. Os tabeliães gerais, ora se submetiam ora se isentavam a ela, o mesmo acontecendo com o pagamento da pensão anual. Quanto a esta, todas as tentativas do tabelionado nos séculos XIV e XV foram no sentido de a reduzir, o que aconteceu em certas vilas do país38. Igualmente, pelo menos desde Afonso V, se admitia a nomeação régia de tabeliães substitutos, quando os detentores dos cargos estavam impossibilitados de servir, por doença ou ausência39.
[p. 21] Fugia ao poder régio a faculdade de nomeação de tabeliães nos senhorios com “mero e misto imperio”, portanto de jurisdição máxima, ainda que a auctoritas sempre lhe pertencesse40. Os senhores, detentores absolutos do judicial, militar e fiscal, controlavam também a burocracia nas suas terras através dos tabeliães que aí colocavam. Deviam, no entanto, escolher homens qualificados41, cujos nomes enviavam para a corte para serem examinados e autorizada pelo monarca a sua actividade42.
Nos séculos XIV e XV a dinâmica dos actos escritos exigiria já que, quase por todo o lado, os tabeliães tivessem escrivães que os coadjuvavam. Escreveriam as minutas sob as suas ordens, quando não mesmo o documento final, que o tabelião, se consciencioso, deveria verificar, formalizar com a leitura em voz alta face às partes e testemunhas, e só depois validar com o seu sinal43.
Era a escrivaninha, como se disse, por certo, a grande escola do tabelionado português, e alguns destes assessores sucediam ao seu mestre. Dele recebendo, como uma espécie de herança, o seu sinal44.
Este sinal tabeliónico corporizava o distintivo de cada um destes profissionais. Assumia diversas formas, começando, como no caso do primeiro tabelião conhecido, por uma simples cruz com círculos nas extremidades, para se transformar em figuras mais ou menos geométricas, algumas deveras elaboradas, [p. 22] ainda que esteticamente de pouco valor, contendo uns quantos o nome do referido tabelião, sobretudo nos primeiros séculos. Sendo únicos e específicos de cada um dos seus detentores, podemos afirmar que, pelo menos no século XIII, alguns sinais foram evoluindo, sobretudo para os finais da vida do tabelião, no sentido da sua simplicidade45. Também excepcionalmente, e com o assentimento régio, podia haver uma mudança de sinal46. A profusão de tabeliães nos séculos XIV e XV leva à similitude de muitos sinais, se não mesmo à sua inteira semelhança47 — o que está ainda por provar, dado que são poucos os estudos existentes sobre o assunto — bem como à necessidade de transmissão do mesmo por morte. É que a imaginação de combinar redondos, losangos, quadrados, laçadas, cruzes, linhas, pontos, por entre o negro e o branco, teria limites !.
As nossas limitações atingem também o conhecimento da duração da carreira dos tabeliães. Pela amostra dos tabeliães de Torres Vedras, que uma tese de doutoramento nos fornece48, alguns estavam no cargo 55, 51, 50 ou 44 anos. A média das 74 observações é, porém, substancialmente mais baixa, orçando pelos 18,1 anos, mas ainda assim considerável. Se lhe acrescentarmos os 25 anos com que iniciariam a profissão, teríamos existências bem prolongadas para as expectativas de vida do homem medieval. E, como já foi dito, e repetimo-lo, para uma bela carreira é necessária uma longa vida49.
Mas passemos dos profissionais aos homens, na tentativa de lhes vislumbrar o perfil económico e estatuto social50.
[p. 23] Na variegada estruturação do corpo social de Quatrocentos, os tabeliães, a par de outros profissionais especializados, não se integravam em qualquer das tradicionais categorias do povo, nobreza ou clero. Seriam talvez do grupo dos oficiais de que nos fala D. Duarte no Leal Conselheiro51.
Podem ser recrutados em qualquer destes estratos ou podem ascender, durante a vida, por clientelismo e favores régios, a uma nobilitação.
Ganham no exercício da sua profissão, e tanto mais quanto mais desenvolvida for a cidade onde são colocados ou conheçam o privilégio de serem tabeliães gerais52. E não ganhariam mal. Na verdade um tabelião do judicial recebe, no século XV, 12 reais pela mais barata sentença escrita em papel que possa redigir, o que equivaleria ao preço de 1 alqueire de trigo53. Por sua vez um tabelião dos paços ao escrever e anotar os mais módicos documentos em papel cobra-se de 16 ou 8 reais, portanto do valor de 1,3 alqueires ou 2/3 de um alqueire de trigo.
Mas os seus meios de subsistência estão ainda ancorados na posse de bens. Seja bens urbanos, como casas, lagares ou fornos, seja prédios da zona peri-urbana, vinhas, olivais, cortinhais ou azenhas, seja ainda terras dispersas pelas aldeias dos termos concelhios54. Bens esses herdados, comprados ou escambados55. A que se juntam ainda os alheios que trazem emprazados56.
[p. 24] Essas propriedades asseguram, em parte, o seu auto-abastecimento. Mas garantem sobretudo a obtenção de géneros excedentes a lançar no mercado. O jogo do mercado não lhe escapa. E como poderia escapar, quando, profissionalmente, ele conhece os meandros de todas as operações financeiras e comerciais que se desenrolam na localidade ?
Tem assim uma particular apetência para se colocar como intermediário de reis e senhores. Arrenda os direitos régios ou as rendas eclesiásticas57. A sua liquidez de capital permite-lhe saldar os pagamentos. E esperar, com as colheitas, pelos melhores preços sasonais ou anuais. Para então especular e altamente lucrar. Quando não perder58 … E, sempre que podia, burlava59.
Se o capital abunda, há que o pôr a render. Compra mais terras que alargam a sua base produtiva. Empresta dinheiro, sem dúvida a juros compensadores, ainda que as cartas não o demonstrem.
Domina, pois, terras, dinheiros e uma profissão especializada. Domina homens. Tem moços ou escrivães que o coadjuvam no ofício. Tem trabalhadores rurais que lhe amanham as terras. Tem cobradores que lhe arrecadam as rendas. Tem criados60.
É assim o tabelião um homem da classe média urbana. Mas como qualquer categoria social, com profundas clivagens entre si, a nível do país ou até a nível local.
[p. 25] São alguns da aristocracia vilã61. Como o tabelião João Lourenço que é cavaleiro e casado com uma filha de Afonso Peres Britacampos, que fora alvazil geral de Coimbra e pertencia à burguesia da cidade. O seu testamento, redigido em 1348, no ano da Peste Negra, é um precioso documento que nos ilustra sobre a sua fortuna e inserção social62. Faz-se sepultar na igreja onde é freguês. Institui uma capela para sufrágio da sua alma. Contempla as diversas instituições religiosas da cidade, desde igrejas a mosteiros. Distribui dinheiros pelas várias confrarias onde é confrade. Contempla familiares, entre eles uma sobrinha freira de Santa Ana. Deixa o cavalo e armas a seu filho. Institui sua testamenteira a mulher.
Em Quatrocentos muitos destes tabeliães mais dotados podem já ter ascendido a certos graus da nobreza. Não raro encontramos, assim, tabeliães que são escudeiros63. Nesta posição social enveredam, como os demais, nestas centúrias, pelo clientelismo e vassalidade64. São vassalos do rei ou “criados” de fidalgos e instituições eclesiásticas. Esta protecção régia ou senhorial reforça o poder específico que a escrita lhes confere.
Entram na casa de um para lhe fazer o testamento ou o inventário dos bens, conhecem a riqueza de outros ao redigir contratos de bens ou obrigações de empréstimos, acercam-se do estatuto social e moral de uns quantos ao passarem cartas de composição e perdão. Conhecem os homens e a tessitura social. Possuem autoridade. São então chamados como testamenteiros65, procuradores66, [p. 26] inquiridores67, árbitros de contendas e demarcações68, inspectores militares69, porta-vozes às Cortes70.
Porque sabem ler e escrever, numa época de analfabetismo, autorizam com o seu testemunho múltiplos documentos, para além dos que elaboram, chamados pelas partes. A sua presença seria penhor de dupla segurança — não seriam os contraentes enganados pelo tabelião que escrevia o acto ; a autoridade e prestígio de um tabelião dava ao acto redobrada firmidão.
Podem almejar o poder. Governar. Na sombra, pressionando os que mandam, ou frontalmente, desempenhando cargos municipais, acumulando-os ilegalmente, ou alternando-os com a sua profissão71.
Não descuram as solidariedades profissionais e caritativas. Se os tabeliães não conheceram em Portugal, nos séculos XIV e XV, as corporações, organizaram-se, porém, em confrarias. É conhecida a confraria dos tabeliães de Coimbra, por referência de 138572, e outras existiriam por certo no país. Certo é que os tabeliães podiam integrar-se noutras confrarias, como fregueses ou simples devotos. Quando não como benfeitores, que mais ou menos prodigamente dotavam uma confraria. E alguns viam-se guindados aos lugares prestigiantes de juízes ou alcaides das confrarias73.
Entreteceriam as suas redes profissionais e de poder com as malhas do parentesco. Casavam com filhas de mercadores ou mesteirais74. E sem dificuldades. [p. 27] O casamento com um tabelião seria desejável socialmente. Ao ponto de uma mulher de Coimbra se dizer tabelioa75. O que logo nos recorda os versos do Cancioneiro Geral de Garcia Resende76, quando nos dizem :
“c’a molher do escrivam
cuyda que he hũa raynha”.
Desembocavam assim os tabeliães, pelo casamento, no negócio. Um ramo familiar sempre entrava para o clero regular ou secular, logo se estendendo um tentáculo para o religioso. Um outro cursaria a Universidade, seria bacharel ou doutor, alcançando cargos na administração local ou central. A inserção familiar do tabelião podia assim alargar a sua esfera de influência do local ao nacional, do tecido leigo ao religioso, do profissional ao político. Por isso quando o poder se ostenta, no desfile da procissão do Corpo de Deus, os tabeliães surgem a acolitar o Santíssimo com tochas acesas, logo após aos juízes, escrivão do rei e dos órfãos77.
Traçado este quadro, fácil é de reter que a profissão de tabelião era, nos séculos XIV e XV, absolutamente imprescindível e omnipresente. Imperava a escrita. Escrever era usar um poder. O tabelionado era apetecido. Os seus detentores abusavam. Os lesados queixavam-se. A sociedade criticava.
A voz do povo em Cortes denuncia este reinado dos agentes da escrita e o cortejo das suas exorbitâncias. Como o farão os poetas e escritores na literatura.
Um primeiro conjunto de agravos em Cortes diz respeito ao próprio monarca, já que era ele que tinha o poder de nomear estes oficiais.
É uma tónica quase constante a queixa contra o excessivo número de tabeliães, muito para além do número que competia a cada localidade, muitas vezes na qualidade de supranumerários. As queixas fazem-se ouvir nas Cortes de 1371 e vão prolongar-se até aos finais do século XV78. Sendo uma profissão que dava [p. 28] influência e, conforme as terras, também rendimentos, os monarcas compensavam muitos dos seus vassalos, dando-lhes este ofício. Acresce que reis, infantes ou senhores, ao colocarem nos concelhos os seus apaniguados como tabeliães e escrivães, estavam, ipso facto, a dominarem os meandros da justiça e da administração local. Mais, a dominarem o próprio quotidiano vivido de todos aqueles que se acercavam de um tabelião para comprar ou vender, fazer um testamento, lavrar um contrato, fazer uma procuração. Ganhando um olhar e um poder próximo de controlo sobre homens e instituições.
Atente-se, porém, que esta queixa pode ter uma dupla leitura. Nuns casos as oligarquias locais — pois são sempre os seus representantes que falam em Cortes — achariam de facto excessivo este número de oficiais, capaz de ameaçar o seu poder e interferir na vida local. Mas noutros casos o agravo podia fazer eco do sentir desses mesmos tabeliães — se tivessem força para impor as suas reivindicações — que desejavam ser em menor número para acumularem maiores réditos do seu labor.
A par do quantitativo exagerado de tabeliães, era igualmente indesejável o de escrivães79. Tanto mais que aqueles se faziam tantas vezes substituir por estes, com os inconvenientes de se dobrarem as custas e trabalhos de um acto80.
Por isso os concelhos queriam chamar a si este privilégio de escolherem tabeliães e escrivães. Logo nas Cortes de 1433, art. 146, pedem para ter a faculdade de eleger para tabeliães as pessoas idóneas e competentes, embora noutro capítulo (91) sugiram, tão-só, a indigitação do concelho, mantendo-se a nomeação régia. Insistem nas Cortes de Lisboa de 1439, art. 12, de Coimbra-Évora de 1472-73, art. 137, e nas de Évora-Viana de 1481-82, art. 34. Era a garantia de não sofrerem o jugo de clientelas de senhores nobres ou eclesiásticos em tal ofício81. Mas se estes não eram queridos, igualmente o não eram os oficiais mecânicos, que de todos os cargos os dirigentes locais desejavam ver afastados, logo do tabelionado e da sua sindicância82.
Em consentâneo advogavam a exclusiva competência de proverem os ofícios das escrivaninhas da câmara, dos órfãos, das coudelarias, da almotaçaria [p. 29] e dos judeus83 e que os nomeados pelo monarca fossem exonerados ao fim de três anos84.
Nunca obtiveram, porém, um deferimento total e definitivo. Porque nunca o monarca queria abdicar de tão influente prerrogativa.
Não menos desejavam os concelhos poder controlar a actividade dos tabeliães, pelo que queriam ter a faculdade de substituir ou exonerar os que fossem ignorantes, incompetentes, desonestos, impertinentes e arrogantes85 e de lançar inquirições anuais para que os prevaricadores fossem punidos86.
Ignorância, incompetência, desonestidade, impertinência e arrogância, eis os vícios do tabelionado aos olhos do povo.
Ignorantes seriam de facto alguns, já que os concelhos por vezes advogam a escolha dos que bem saibam ler e escrever87. Será um exagero, sem dúvida, imaginarnos um tabelião sem tais faculdades, mas muitos não seriam nenhuns peritos em tais artes88. E se incompetentes para o desempenho do cargo para que haviam sido nomeados, podiam fazer-se substituir na função por escrivães ou quaisquer outros homens habilitados.
A incompetência podia, todavia, não provir da ignorância, mas da desonestidade. Não registar os actos, não apôr as decisões dos juízes nas sentenças89 eram tantas vezes artimanhas que compensavam com novas escrituras e processos, logo, mais ganho.
A cupidez do tabelião é quase uma insígnia profissional. Leva mais dinheiro por elaborar os documentos do que o taxado ou, quando recebe à linha, espaça -as demasiado ou distende a letra90. Intenta cobrar-se pela procura dos documentos91. Chega mesmo a exigir dos clientes a entrega do papel e pergaminho para a feitura dos actos92. Tudo isto se agrava com o incumprimento do dever de se encontrarem no seu local de ofício. Clama-se, pois, em Cortes, que aí estivessem a horas certas, antes e depois de comer, e, se faltassem, os distribuidores não lhes deviam dar trabalho93.
[p. 30] Impertinentes e arrogantes, querem-se intrometer na tramitação da justiça. Vício antigo é o de se arrogarem o direito de advogar e procurar94, como já anotam os regimentos, sentando-se mesmo nos lugares dos juízes95. Ousam até pôr palavras suas nas querelas, como o referem os concelhos nas Cortes de Évora-Viana de 1481-82, art. 25. Acusam as gentes perante o corregedor e, a coberto deste, nunca são identificados96. Falsificam as devassas e ficam com elas em seu poder97. Retêm os documentos que lhes são entregues para trasladar até ao fim dos feitos98. Não notificam os juízes, que iniciam funções, dos estados da terra99. Entregam as sentenças às partes, sem assinatura dos juízes e sem elaborar o seu registo100.
E todo o poder da escrita em exercício devia ser a pressão mais eficaz para arrematarem as rendas dos lugares e para ascenderem aos mais altos cargos municipais, tais como o de vereador ou o ambicionado de juiz. Por isso se lhes proibe, em várias Cortes, a simultaneidade de serem rendeiros101 e exercerem outros ofícios102.
Estas eram queixas e pedidos feitos. Apenas algumas anuências régias foram obtidas. As mais das vezes a realidade abusiva e opressora mantinha-se. A lei só tinha efeito se cumprida. As conivências entre os agentes da justiça e da escrita seriam numerosas e variadas. Impunha-se pois a força de um real vivido103.
Que não escapa ao olhar arguto dos poetas e escritores. Atente-se, desde logo, em alguns passos da trova de Álvaro de Brito Pestana, em louvor de Pero Diaz, “escrivam d’ante o corregedor da cidade de Lisboa”, compilada no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende :
[p. 31] “Pero Diaz é auydo
por omem que mereçido
tem a Deos e a El Rey
…
E tem mays hũa herdade
que ouue com condiçam
de nunca falar verdade,
…
bebe mais çumo de vinha
do que leua hũ tenor.
…
conuertido de rezam
vos escreue o sy por nam
asentando falsos termos.
…
por quem dinheiro arreuesa
sua mão com grande presa
mete logo antrelinha.
Negua sempre a verdade,
escreue sempre mentira,
…
perguntem…
se he este o escriuam
o mais falso e mays bulrram
que no mundo se nomea.”104
São estes os “mimos” de caracterização de um tabelião — bajulador, ganancioso, mentiroso, bêbedo, falsário, burlão.
Gil Vicente não hesita pois, no seu Auto da Barca do Inferno, em os colocar nas profundezas eternas.
“Diabo — Ora entrae nos negros fados,
ireis ao lago dos cães,
e vereis os escrivães
como estão tão prosperados
Corregedor — E na terra dos danados,
estão os Evangelistas ?
Diabo — Os mestres das burlas vistas
lá estão bem fragoados.”105
[p. 32] Também Jorge Ferreira de Vasconcelos não poupa, nas suas comédias, o tabelionado. Na Comédia Aulegrafia refere, ao contar a ascendência de uma personagem, que era escudeiro de um fidalgo : “meu pay foy tabalião do judicial da vila de Alfayates, e sendo mexericado por descuidos do seu officio, foy prezo, em que desbaratou o que tinha, e faleceo na cadea”106. E na Comédia Eufrosina ouve-se este diálogo :
“Euphrosina — Pois vede laa. Quem he aquella dos pagens tam arrebicada ? Silvia — He molher de hum tabalião.
Euphrosina — Grande estado leua, pareceme que he confiada de sy.”107
Como já se vira, o casamento com um tabelião era apetecido. Como o era o desempenho de tal ofício. E para o obter até à Virgem se recorria.
Narra-se nas Cantigas de Santa Maria que Afonso X, tendo visto as pinturas da Virgem que um homem fazia em livros, lhe prometeu uma mercê. Logo :
“mais o ome por merçee lle pediu que lle désse
en Vila-Real a meya dũa sa escrivania.”
Porém a carta régia tardava, porque lha obstruiam. Uma promessa a Santa Maria do Porto foi feita e
“logo foi Santa Maria de todo en sa ajuda
…e log’a carta ouv’aquel que a pedia.”108
Seria com ou sem pedidos do Alto que o rei agraciava com tabelionados. Indiscriminadamente. A ponto de — atente-se — Afonso V fazer tabelião um caçador do príncipe seu herdeiro109. Quer soubesse ou não escrever direito, continuaria por certo a caçar. Mas agora dinheiro em bolso alheio…
Em tendência longa sempre os escritores nos oferecem as mesmas tónicas — o tabelionado dá riqueza, confere poder. Mas riqueza e poder conquistados sem ética ou moral.
Recordem-se as palavras de Camilo Castelo Branco na sua obra Maria da Fonte :
[p. 33] “Ninguem se queixa dos cirurgioens ou medicos, dos advogados e tabelliães que reduzem à miséria os que tem a infelicidade de lhes cair nas unhas” ; e mais à frente : “tabelliães, medicos e advogados parece que haõde rebentar de fartos…” ; para rematar “e lá virá o tempo em que os sovinas, os medicos, advogados e tabeliães do publico, judicial e notas saltem no inferno os conhecidos pulos”110.
Mas deixemos o tempo longo e o conjunto. Focaremos agora mais de perto, do colectivo ao individual, para analisarmos o exercício profissional do tabelionado.
Fixar-nos-emos em Antão Diiz (Dias ou Domingues, ainda um caso a esclarecer), tabelião de Lamego, do qual possuimos um livro de notas de Agosto de 1473 a Agosto de 1474111. É o mais antigo livro de notas até agora conhecido em Portugal e um dos raros, se não o único completo, que nos ficou para os séculos medievais. Daí, pela sua raridade, o seu valor.
Antão Diiz foi nomeado tabelião das notas por carta de D. Afonso V de Lisboa, a 14 de Julho de 1473112. O seu antecessor, Gil Esteves, renunciara ao cargo e este sucede-lhe, logo registando na chancelaria, naquela mesma data, o seu sinal. Três anos decorridos e, a 3 de Agosto, D. Afonso V eleva-o a tabelião geral “em nossos regnos e senhorios”, exigindo-lhe a renda devida e o uso das vestes próprias dos tabeliães. Carta esta confirmada por D. João II em Abrantes, a 16 de Agosto de 1483 e por D. Manuel em Palmela, a 28 de Maio de 1496113. Assim poderá ter exercido o cargo, pelo menos, durante duas décadas.
Seus contemporâneos eram os notários da Sé, mas também os tabeliães Rodrigo Anes, João de Riba Coa, Afonso Rodrigues, Pero Afonso, tabelião do judicial, para além de vários tabeliães que no termo de Lamego exerciam a profissão, em nome de um senhor, ou ainda o escudeiro Fernão de Torres, tabelião geral114. Destes três últimos apresentamos uma amostra dos seus sinais. Aliás é curioso referir-se que, no seu livro, Antão Diiz anota um acto em que ele e o tabelião Rodrigo Anes estão a dar o seu consentimento para que Afonso Domingues possa ser tabelião além do número na cidade, do público e das audiências, pedindo inclusivé o assentimento régio para tal115.
Desconhecemos, por ora, o estatuto sócio-económico de Antão Diiz. Sabemos apenas que era propriétário de uma vinha116 e parece ter recebido o privilégio de se abastecer na carniçaria do cabido da Sé, com uma ração de meio cónego117.
Todos os demais informes dizem respeito ao exercício da sua actividade e provêm, essencialmente, do referido livro de notas118. É este um livro de papel, [p. 34] forrado com um documento escrito em pergaminho, mas que já perdeu a capa dianteira. Encontra-se muito roído pela traça e danificado nos cantos, manchado, e bastante apagado em algumas folhas iniciais, mas sobretudo nas finais. Foi escrito com tinta castanha, da mais escura à mais clara, numa letra gótica cursiva. Tem numeração posterior que lhe atribui 141 folhas, se bem que se esquecessem de numerar duas, logo perfazendo um total de 143. Sabemos então que lhe faltam 11 folhas, pois que na última folha do livro, em letra que ainda pode ser do século XV, se anota “CLIIII folhas vão neste livro”.
Contém cerca de 284 notas de documentos in extenso, redigidas, na maioria, já com todo o seu formulário e apresentando os sinais das testemunhas. Em muitas delas Antão Diiz tem mesmo o cuidado de ressalvar, no final do acto, as palavras riscadas, borradas ou entrelinhadas,119 ainda que também haja falhas a esta regra120. Mas não deixam também de aparecer algumas notas apenas minutadas e outras incompletas, podendo surgir ou não posteriormente a nota completa121. A expedição do documento definitivo é assinalada, no geral, na margem esquerda, pela palavra, fecta, em sigla (ff.), abreviatura, ou por extenso.
Seguindo uma ordem cronológica que vai de Agosto de 1473 — portanto quase de imediato à sua nomeação — até Agosto de 1474, apresenta algumas falhas sequenciais em dias, meses ou até ano, que nos levantam alguns problemas que tentaremos dilucidar na edição crítica do mesmo. A que se junta a dificuldade de certas notas insuficientemente datadas. Acresce que duas notas foram iniciadas por uma mão diferente, mas acabadas por Antão Diiz122, havendo também aproveitamento de espaços ou folhas em branco, onde outros tabeliães interpolaram notas de documentos muito posteriores123.
Mas fixemo-nos nesse substancial corpus de 284 notas para perguntarmos — para quem trabalha este tabelião ? ; onde escreve ? ; qual o montante da sua produção ? ; que tipo de documentos redige ?.
Eis as respostas.
Trabalha para moradores da cidade de Lamego, mas também para alguns do seu termo. Trabalha para particulares leigos e eclesiásticos. Sobressaem de entre estes últimos os cónegos da Sé de Lamego, ainda que a catedral tenha [p. 35] notários próprios. Num caso elaborou, por ordem do juiz de Lamego, um inventário de bens de uma mulher que falecera e noutros dois redigiu, perante o próprio juiz, duas sentenças.
Escreveu a maior parte dos documentos em Lamego, mas deslocou-se a alguns lugares do termo para anotar 12 actos. 39,09% das notas que redigiu em Lamego foram escritas no seu local de trabalho — na casa ou morada do tabelião, como afirma. Mas para dar fé de outros percorreu a cidade. Peregrinou pelas casas de muitos vizinhos, uns intervenientes nos actos, outros testemunhas e fiadores e ainda outros que aparentemente nada parecem ter a ver com os assuntos. Escreveu 23,46% das escrituras no enquadramento da Sé — fosse no seu interior, no altar de Santa Maria, na capela de Santa Cruz, onde se fazia cabido, e no claustro, fosse nos paços do bispo, nos paços do deão e nas casas do chantrado, fosse finalmente na porta, no adro ou na praça da Sé. Mais invulgarmente acolheu-se à sombra do carvalho do bispado, ao alpendre da praça, à porta de uma olaria ou foi até à “tabela” da sisa, à igreja de Almacave ou ao campo da feira escrever um documento.
Antão Diiz exerce o seu ofício em qualquer dia da semana, incluindo, parece-nos, o Domingo, escrevendo em alguns deles 5 notas. O máximo de documentos produzidos num mês é 35, o que aconteceu em Janeiro e Junho, como se pode ver no gráfico, e o mínimo é de 7 ou 10, valores atingidos, respectivamente, em Agosto de 1474 (e que, por ser o último mês do livro poderá estar incompleto) e Abril. Fica-se então, em média, pelos 23,7 documentos mensais.
Escreve o mais variado tipo de documentos, como se pode ver pela tipologia documental que aqui apresentamos. Tipologia devedora do completíssimo estudo de Pilar Ostos e María Luisa Pardo sobre os tabeliães de Sevilha124, mas também algo diferente, até pelo desfasamento cronológico existente. Trabalhámos na sua elaboração com o apoio de conhecimentos diplomáticos e jurídicos125, e múltiplas dúvidas se nos levantaram, não, por certo, plenamente resolvidas. Desejavámos, assim, que ela fosse um ponto de partida para ulteriores estudos sobre esta temática que, entre nós, e a nível da documentação particular, estão ainda muito incipientes.
Avultam esmagadoramente os 207 documentos sobre bens, créditos e serviços. Seguem-se-lhes os 57 documentos que se reportam à pessoa e suas relações, para, a uma distância considerável, haver um conjunto de 13 actos sobre o casamento e uns escassos 7 documentos “mortis causa”. Nada de admirar, pois era de facto a actividade económica aquela que mais dependia da escrita. Naquele conjunto maioritário a fatia substancial (66,67%) reporta-se a actos sobre bens, créditos e serviços. E aí dominam notoriamente os contratos de exploração — 41 emprazamentos e 23 arrendamentos — ainda que as 32 vendas sejam também significativas da capacidade económica dos homens de Lamego. E ainda mais significativa se lhe acrescermos os 55 documentos que versam sobre operações creditícias. Lamego é uma cidade em plena actividade comercial nesta década [p. 36] de 70 de Quatrocentos. E os seus vizinhos não hesitam em recorrer ao empréstimo — e são 35 os mútuos — para conseguir dinheiro. Com ele se remediando, com ele lucrando, ou por ele se perdendo, é o que nos fica escondido. Igualmente muitos dos contratos de prestação de serviços estão relacionados com a actividade comercial.
Já porque os homens se casam geralmente só uma vez, e inegavelmente só têm uma morte, este tipo de documentação é menos abundante. Impressionam, todavia, os 13 documentos relacionados com dotações matrimoniais que, num ano, se realizaram. Constituem, sem dúvida, verdadeiras preciosidades. Aliás este livro dá-nos a conhecer tipos de documentos com que nunca antes tínhamos deparado a partir dos fundos régios, eclesiásticos ou municipais. Mais ainda. Esta tipologia demonstranos, à saciedade, o como a escrita invade o quotidiano do homem medieval de Quatrocentos, mesmo nos seus actos mais vulgares. Conhecimentos, consentimentos, reconhecimentos, quitações, cumprimentos de obrigações, notificações para isto ou aquilo, tudo fica registado. Para que se lembre, para que se ateste, para que se cumpra. E nunca se olvide. Pela fé e perenidade da escrita.
E esta capacidade de traduzir por escrito as múltiplas e variadas situações reais que lhe eram apresentadas levaria Antão Diiz a ter de redigir por si mesmo muitos actos, sem que prévios modelos existentes o pudessem ajudar126. Assim estrutura os seus actos segundo uma forma objectiva, atendo-se às cláusulas essenciais do formulário exigidas para cada tipo de documento127.
Logo, no protocolo inicial não há invocação, que já estava praticamente em desuso, como sabemos, mas apenas os autores e destinatários, por vezes com as suas identificações profissionais ou sociais e de morada. Os documentos iniciamse, esmagadoramente, pela notificação — “saibham quantos este estormento virem”, “saibham quantos esta carta virem”.
No corpo do texto surge no geral apenas a disposição, introduzida muito objectivamente pelo verbo — “dou e outorgo”, “vendo”, “arrendo”, “estabeleço por meu certo procurador” e tantos outros — que já ligava o autor com o destinatário. A parte dispositiva é clara e correcta, apresentando o conteúdo essencial que a cada tipo documental corresponde.
O escatocolo compõe-se da datação e validação por testemunhas e subscrição do tabelião. A datação inclui, de forma directa, a data tópica, o dia, o mês e o ano. Só num caso deparamos com o dia da semana. A data tópica, que surge em quase todos os documentos, é muito precisa, o que nos leva a poder reconstituir os locais de trabalho do tabelião. O dia do mês e as centenas, dezenas e unidades são expressas em numeração romana. Um menor número de actos — sem relação com o seu conteúdo — são datados logo no início. O nome das testemunhas é [p. 37] heterografado, mas surgem as suas assinaturas no final. Apresentam-se, na maior parte dos casos, por cruzes e sinais, cuja simbologia temos em estudo. A subscrição tabeliónica introduz-se, no geral, pela fórmula “e eu Antam Diiz pubrico tabeliam por noso senhor ell rrey na dita cidade e seus termos que esta nota escrevy”.
Três notas aduzem no final o seu pagamento — respectivamente 12 reais em 2 casos e 14 no outro. Estando estas taxadas a 16 para a folha de papel e 8 para a meia folha, não condizem, salvo se ao montante das duas primeiras estivessem acrescidos os 4 reais de percurso.
Numa exploração não exaustiva, mas ainda assim bastante trabalhosa, tivemos a felicidade de encontrar 9 munda em pergaminho de Antão Diiz (mas um deles com 2 exemplares), escritos para o cabido da Sé de Lamego128.
Aqui vos apresentamos a nota, escrita na folha 20 rosto e verso e o seu mundum129.
Não há substanciais diferenças entre ambos os documentos. No original, quando se anuncia que o cabido foi reunido “per soom de campãa tangida”, acrescenta-se “segundo costume”. Na precisão do destinatário, depois de “meo conego”, apõe-se “e vigairo da dicta See”. Já na parte final, quando se explicita que dois documentos foram elaborados com o mesmo teor, precisa-se “este he ho de Andre Affomso”, para além de se completar a expressão “fforom outorgados” para “fforom ffeitos e outorgados”. Antes de se introduzir a data tópica pela localização numa capela da Sé escreve-se, no original, “na cidade de Llamego”, que na nota não se viu necessidade de integrar. A maior diferença será o acrescento de uma testemunha “Joham Rroiz preuendeiro do cabiido”, para além de se anunciar, como era de esperar, de forma diferente, a subscrição notarial e aposição do sinal : “e eu Antam Diiz pubrico tabeliam por noso senhor ell rrey na dita cidade e seus termos que esto estormento d’emprazamento escrevy e aquy meu sinall ffiz que tall he”.
Tendo tido necessidade de entrelinhar uma palavra, na segunda linha do original, ressalva-a no final. Também no fim do documento acrescenta o pagamento : “pagou deste e doutro com notata reais”. Conferindo com as tabelas este preço afigura-se-nos inferior ao taxado, mas deixamos este ponto em aberto.
Se pudessemos tomar esta nota e respectivo original como paradigmáticos, diríamos que Antão Diiz é cuidadoso no seu trabalho e cumpre o estabelecido nas Ordenações Afonsinas, à excepção da data que não escreve por extenso. Pelo menos cumpria, quando trabalhava para aqueles que podiam inspeccionar a sua escrita e formulário. Mas porque a maioria das notas está bastante completa, talvez também o mesmo sucedesse com os demais clientes.
[p. 38] A concluir :
Falámos de tabeliães. Profissionais especializados da escrita. Alguns competentes e sérios sem dúvida. Outros menos bem habilitados. Talvez um razoável número abusador. Todos procurando tirar o melhor partido do seu ofício. Com ele se inserindo na teia social e económica do lugar onde o exerciam. Guindando-se uns quantos a uma posição cimeira na vida local.
Falámos de um tabelião. Que mal começou a exercer a sua profissão diligenciou no sentido de anotar os actos produzidos, como mandava a lei. E parece ter escrito os documentos, que a clientela lhe requereu, de uma forma correcta. Se ao escrever quase três centenas de actos num ano ficou a conhecer a vida e os homens de Lamego — disso podendo ter retirado dividendos menos lícitos, o que de todo desconhecemos — certo é que os homens de Lamego obtiveram da sua arte a credibilidade e fé pública de que necessitavam e com que queriam ver credenciados os seus negócios e as suas relações pessoais, das mais particulares às mais públicas. Sem dúvida, a partir de 1473, a casa do tabelião Antão Diiz passou a ser um novo pólo dinamizador da vida dos homens, na cidade de Lamego. Como o seria a dos demais tabeliães nas muitas cidades e vilas do Portugal Quatrocentista.
[p. 39] Apêndices
I. Gráficos
[p. 40] [p. 41]II. Láminas
[p. 43] [p. 44] [p. 45][p. 46] III. Tipologia documental
- 1. Documentos referentes à pessoa e suas relações
- 1.1. Relações interpessoais
- 1.1.1. Renúncia a queixa judicial
- 1.1.2. Transacção
- 1.1.3. Perdão
- 1.1.4. Cumprimento de obrigação decorrente de sentença
- 1.1.5. Consentimento para a concessão de ração vitalícia
- 1.1.6. Consentimento para troca de ração
- 1.1.7. Obrigação de alimentos
- 1.1.8. Contrato de criação
- 1.1.9. Quitação de obrigações de tutela
- 1.2. Representação da pessoa
- 1.2.1. Procuração
- 1.2.2. Subprocuração
- 1.1. Relações interpessoais
- 2. Documentos sobre bens, créditos e serviços
- 2.1. Sobre bens, sua transferência e locação
- 2.1.1. Doação
- 2.1.2. Venda
- 2.1.3. Venda de colheita
- 2.1.4. Garantia de venda
- 2.1.5. Escambo
- 2.1.6. Emprazamento (contrato enfitêutico em vidas)
- 2.1.7. Subemprazamento
- 2.1.8. Consentimento a subemprazamento
- 2.1.9. Arrendamento
- 2.1.10. Subarrendamento
- 2.1.11. Parceria pecuária
- 2.1.12. Reconhecimento de parceria pecuária
- 2.1.13. Arrendamento e parceria pecuária
- 2.1.14. Parceria de exploração de prédio urbano
- 2.1.15. Consentimento a renúncia
- 2.1.16. Apessoamento
- 2.1.17. Quitação de rendas
- 2.1.18. Reconhecimento de dívida de renda
- 2.1.19. Reconhecimento de dívida de compra
- 2.1.20. Quitação de preço de venda
- 2.1.21. Intimação para restituição de bens
- 2.1.22. Obrigação de reparação de bens
- [p. 47] 2.1.23. Obrigação de prestação de coisa
- 2.1.24. Notificação de obrigação de prestação de coisa
- 2.1.25. Contrato de fornecimento de bens
- 2.1.26. Acordo de divisão de águas
- 2.2. Sobre crédito
- 2.2.1. No privado
- 2.2.1.1. Mútuo
- 2.2.1.2. Venda a crédito
- 2.2.1.3. Obrigação de prestação pecuniária
- 2.2.1.4. Quitação de prestação pecuniária
- 2.2.1.5. Penhor
- 2.2.1.6. Fiança
- 2.2.1.7. Substituição de fiança
- 2.2.1.8. Quitação de fiança
- 2.2.1.9. Quitação parcial de remissão de penhor
- 2.2.2. No judicial
- 2.2.2.1. Sentença relativa a mútuo
- 2.2.2.2. Sentença sobre dívida
- 2.2.1. No privado
- 2.3. Sobre serviços e sua locação
- 2.3.1. Entre particulares
- 2.3.1.1. Contrato de trabalho
- 2.3.1.2. Contrato de prestação de serviço
- 2.3.1.3. Contrato de empreitada
- 2.3.1.4. Obrigação de prestação de serviço
- 2.3.1.5. Quitação de serviço prestado
- 2.3.1.6. Quitação de pagamento de serviço prestado
- 2.3.2. Entre oficiais
- 2.3.2.1. Certificado de aferição
- 2.3.2.2. Conhecimento de cobrança
- 2.3.2.3. Quitação de cobrança
- 2.3.2.4. Consentimento para o exercício de profissão
- 2.3.1. Entre particulares
- 2.1. Sobre bens, sua transferência e locação
- 3. Documentos sobre o casamento
- 3.1. Doação para casamento
- 3.2. Dote
- 3.3. Arras
- [p. 48] 3.4. Doação para casamento, dote e arras
- 3.5. Obrigação de doação para casamento
- 3.6. Quitação de doação para casamento
- 3.7. Quitação de dote
- 4. Documentos “mortis causa”
- 4.1. Testamento
- 4.2. Traslado de cédula de testamento
- 4.3. Cumprimento de legado
- 4.4. Acordo de partilha de herança
- 4.5. Inventário
1.1.1. – Renúncia a queixa judicial : Acto pelo qual o lesado renuncia ao seu direito de ir a juízo.
1.1.2. – Transacção : Contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões.
1.1.3. – Perdão : Acto pelo qual o ofendido, por si ou por outrem, perdoa, por motivos pessoais, a ofensa contra ele praticada.
1.1.4. – Cumprimento de obrigação decorrente de sentença : Acto pelo qual alguém satisfaz, total ou parcialmente, os deveres decorrentes de uma sentença.
1.1.5. – Consentimento para concessão de ração vitalícia : Acto pelo qual alguém, no âmbito dos seus direitos, consente na concessão a outrem de uma ração.
1.1.6. – Consentimento de troca de ração : Acto pelo qual alguém, no âmbito dos seus direitos, consente no escambo de uma ração.
1.1.7. – Obrigação de alimentos : Acto pelo qual uma pessoa se obriga a prestar alimentos em vida de outrem.
1.1.8. – Contrato de criação : Acto pelo qual os pais entregam uma filha a outrem que este deve manter e casar, tirando dela proveito honesto.
1.1.9. – Quitação de obrigações de tutela : Acto pelo qual se dá um tutor por livre das obrigações que tinha para com o menor que estava sob sua tutela.
1.2.1. – Procuração : Acto pelo qual alguém confere a outrem o poder para praticar, em seu nome, um ou mais actos jurídicos.
1.2.2. – Subprocuração : Acto pelo qual o procurador de alguém transfere os poderes recebidos a um terceiro.
2.1.1. – Doação : Acto pelo qual uma pessoa dispõe gratuitamente de uma coisa, um bem ou um direito, de maneira definitiva e irrevogável, com ou sem encargos.
2.1.2. – Venda : Acto pelo qual se transmite a propriedade ou a titularidade de uma coisa, um bem ou um direito, mediante o pagamento de um preço.
2.1.3. – Venda de colheita : Acto pelo qual a posse de frutos pendentes, um bem de existência incerta, passa das mãos do vendedor para as do comprador, mediante o pagamento de um preço oscilante de acordo com a colheita.
2.1.4. – Garantia de venda : Acto pelo qual um vendedor garante o bom estado do bem a vender.
[p. 49] 2.1.5. – Escambo : Acto pelo qual uma coisa ou um bem é entregue a uma pessoa, em contrapartida de uma coisa ou de um outro bem de valor equivalente.
2.1.6. – Emprazamento : Acto pelo qual o proprietário de um bem ou direito concede o seu usufruto a outrem, em uma ou mais vidas, mediante o pagamento de renda, acrescida ou não de foros e serviços.
2.1.7. – Subemprazamento : Acto pelo qual o emprazante concede a outrem o usufruto de um bem que traz emprazado, mediante o pagamento de uma renda.
2.1.8. – Consentimento a subemprazamento : Acto pelo qual o senhorio do bem usufruido dá o seu consentimento ao acto do emprazante.
2.1.9. – Arrendamento : Acto pelo qual o proprietário de um bem ou direito concede o seu usufruto a outrem, por um tempo curto de meses ou inferior a 10 anos, mediante o pagamento de uma renda fixa.
2.1.10. – Subarrendamento : Acto pelo qual um arrendatário entrega o bem ou direito usufruido, em todo ou em parte, com os respectivos encargos de renda ao senhorio, acrescida de outra que para si reverte.
2.1.11. – Parceria pecuária : Acto pelo qual uma ou mais pessoas entregam a outra ou a outras um animal ou vários para esta ou estas criarem, pensarem e vigiarem, com o ajuste de repartirem entre si os lucros futuros em certa proporção.
2.1.12. – Reconhecimento de parceria pecuária : Acto pelo qual alguém reconhece uma situação de parceria pecuária existente de facto.
2.1.13. – Arrendamento e parceria pecuária : Acto que acumula os dois contratos anteriores.
2.1.14. – Parceria de exploração de prédio urbano : Acto pelo qual uma pessoa entrega a outra a exploração de um prédio urbano, convencionando dividir entre si os lucros em certa proporção.
2.1.15. – Consentimento a renúncia : Acto pelo qual o senhorio consente na desistência do usufrutuário ao bem ou direito usufruido, no geral abrangendo também a indigitação do novo usufrutuário.
2.1.16. – Apessoamento : Acto pelo qual o usufrutuário aliena o seu direito de usufruto entre vivos.
2.1.17. – Quitação de renda : Acto que dá por liberta, total ou parcialmente, a pessoa obrigada ao pagamento de uma renda.
2.1.18. – Reconhecimento de dívida de renda : Acto pelo qual alguém se declara devedor de uma renda.
2.1.19. – Reconhecimento de dívida de compra : Acto pelo qual alguém se declara devedor do preço a satisfazer por uma compra.
2.1.20. – Quitação de preço de venda : Acto pelo qual alguém se declara pago pela venda de um bem.
2.1.21. – Intimação para restituição de bens : Acto em que um senhorio, por incumprimento de condições exigidas sobre bens, intima à restituição dos mesmos.
2.1.22. – Obrigação de reparação de bens : Acto pelo qual alguém se obriga a reparar um dano causado num bem, reconstituindo a situação anteriormente existente.
2.1.23. – Obrigação de prestação de coisa : Acto pelo qual alguém se obriga a entregar alguma coisa a outrem que, a qualquer título, invoca esse direito.
2.1.24. – Notificação de obrigação de prestação de coisa : Acto pelo qual se dá conhecimento a alguém da obrigação de prestação de coisa.
[p. 50] 2.1.25. – Contrato de fornecimento de bens : Acto pelo qual alguém se compromete a fornecer a outro certos bens em determinadas condições, mediante pagamento especificado.
2.1.26. – Acordo de divisão de águas : Acto pelo qual as partes chegam a um acordo sobre a fruição de águas comuns.
2.2.1.1. – Mútuo : Acto pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, no geral sob garantia de hipotecas, penhores ou fianças.
2.2.1.2. – Venda a crédito : Acto pelo qual alguém fica de imediato na posse de um bem cuja propriedade adquire, só posteriormente efectivando o pagamento do respectivo preço.
2.2.1.3. – Obrigação de prestação pecuniária : Acto pelo qual alguém se diz obrigado a outrem a uma prestação pecuniária.
2.2.1.4. – Quitação de prestação pecuniária : Acto que liberta a pessoa obrigada a uma certa prestação pecuniária, seja a título de mútuo, ou a qualquer outro, por vezes desconhecido.
2.2.1.5. – Penhor : Acto que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito pelo valor da coisa móvel pertencente ao devedor.
2.2.1.6. – Fiança : Acto pelo qual alguém se constitui como garante de um crédito ou de outros pagamentos a efectuar por outrem.
2.2.1.7. – Substituição de fiança : Acto pelo qual alguém se coloca como fiador, libertando outro das suas obrigações.
2.2.1.8. – Quitação de fiança : Acto que liberta a pessoa obrigada por fiadoria.
2.2.1.9. – Quitação parcial de remissão de penhor : Acto pelo qual o credor reconhece que o devedor satisfez, apenas em parte, as obrigações creditícias de um penhor.
2.2.2.1. – Sentença relativa a mútuo : Acto no qual um juiz decide sobre as cláusulas de um mútuo.
2.2.2.2. – Sentença sobre dívida : Acto pelo qual um juiz decide sobre as relações entre um credor e um devedor.
2.3.1.1. – Contrato de trabalho : Acto pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.
2.3.1.2. – Contrato de prestação de serviço : Acto em que uma das partes se obriga a proporcionar a outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
2.3.1.3. – Contrato de empreitada : Acto pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.
2.3.1.4. – Obrigação de prestação de serviços : Acto pelo qual alguém se declara obrigado à prestação de um determinado serviço a outrem.
2.3.1.5. – Quitação de serviço prestado : Acto que reconhece um serviço prestado, libertando de qualquer encargo o obrigado.
2.3.1.6. – Quitação de pagamento de serviço prestado : Acto pelo qual se dá alguém por quite do pagamento de um serviço que lhe fora prestado.
2.3.2.1. – Certificado de aferição : Acto que atesta a aferição oficial de pesos e medidas.
2.3.2.2. – Conhecimento de cobrança : Acto em que uma autoridade dá conhecimento da entrega a outra de uma obrigação de cobrança de direitos públicos.
2.3.2.3. – Quitação de cobrança : Acto pelo qual se dá alguém por quite de uma obrigação de cobrança.
[p. 51] 2.3.2.4. – Consentimento para o exercício de profissão : Acto pelo qual uma ou várias pessoas com a mesma profissão dão o seu assentimento para o exercício dela pelos seus pares.
3.1. – Doação para casamento : Doação feita a um dos esposados ou a ambos, em vista do seu casamento ; nela se considera apenas as doações feitas por terceiros, não parentes.
3.2. – Dote : Doação para casamento feita pelos pais dos esposados.
3.3. – Arras : Doação para casamento feita pelo marido à futura esposa.
3.4. – Doação para casamento, dote e arras : Acumulação, num só acto, das três doações anteriores.
3.5. – Obrigação de doação para casamento : Acto pelo qual alguém se diz obrigado a uma doação para casamento.
3.6. – Quitação de doação para casamento : Acto pelo qual um ou os dois esposados dizem, por si ou por outrem, ter recebido de alguém uma doação para casamento.
3.7. – Quitação de dote : Acto pelo qual os filhos, por si ou por outrem, declaram ter recebido de seus pais bens para casamento.
4.1. – Testamento : Acto de última vontade pelo qual alguém dispõe dos seus bens após a sua morte.
4.2. – Traslado de cédula de testamento : Cópia autenticada pelo tabelião de um documento, sem fé pública, com disposições testamentárias.
4.3. – Quitação de legado : Acto pelo qual os legatários, testamenteiros, ou outrem por eles, dão por executado um legado a pessoas ou para sufrágio da alma.
4.4. – Acordo de partilha de herança : Acto pelo qual, à morte de alguém, os seus herdeiros, muitas vezes depois de desavenças, chegam a um acordo sobre a partilha dos bens herdados.
4.5. – Inventário : Rol dos bens, totais ou parciais, de uma pessoa falecida.